feliz ano novo dois

Uma explosão. O barulho muito alto, e ele estava bem ali ao lado. Era ano novo de novo, e sua família nunca deu importância que ele fosse muito mais sensível ao som do que os outros. Porque nasceu assim, simplesmente. Ficou surdo do ouvido esquerdo quando alguém na família resolveu soltar fogos no quintal, poucos anos antes. Perdeu aos poucos a audição direita também, até ficar completamente surdo ao longo dos anos seguintes.

Estar surdo era desconfortável. As coisas se mexiam num silêncio absurdo. Ninguém tinha mais tanta paciência. Ele quase desejou ser surdo de nascimento, assim já seria profissional na linguagem dos sinais e já teria desenvolvido alguns superpoderes com os outros sentidos. Conforto sempre foi a sua prioridade. O melhor lugar da casa era sua cama, em frente da qual havia uma televisão. Uma TV sem cor, mas tudo bem, porque ele só gostava era da dinâmica das imagens.

Aos poucos ele foi percebendo a diferença de distância das pessoas em relação a si mesmo. Uma coisa de energia, talvez. Aos poucos ele pôde saber com mais agilidade quem se aproximava, e outros truques também. Mas ficara mais antissocial. Logo ele, que sempre fizera questão de receber todas as visitas e participar de todos os encontros, sempre muito participativo e animado. Agora se sentia um velho cheio de falhas. Assim ele pensava sobre os velhos. Ele ainda tão jovem.

Deitado, ele observava as bocas das pessoas. Os risos doíam mais. Eram ainda mais silenciosos. Eram como segredos que só ele não podia saber. Antigamente, era gostoso reconhecer as vozes das pessoas: ele não errava nunca. Pelo som dos passos, ele sabia sempre quem estava prestes a chegar.

Às vezes sentia-se um pouco abandonado pela família. Daí alguém dava uma atenção rápida pra ele e ele amava o mundo de novo. Às vezes sabia receber um carinho especial de alguém por dó de sua condição. De qualquer forma, nunca deixou de balançar o rabo pra ninguém. Os afagos valiam mais do que qualquer barulho, e os próximos anos novos ele poderia passar dormindo tranquilamente na sua gorda almofada da sala, com vista pra televisão.

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